Lembra-se? No início, eram só dois autores…

Confira o artigo de Heloisa Starling e Afonso Borges

  • por em 17 de julho de 2019 | atualizado: 13/02/2020 - 12:45

(Imagem: divulgação)

Por Heloisa Starling e Afonso Borges

Em novembro de 2017 um abaixo-assinado com 30 mil assinaturas exigiu que o SESC Pompéia, em São Paulo, cancelasse a participação da filósofa norte-americana Judith Butler no seminário “Os fins da Democracia”, realizado em parceria com a Universidade da Califórnia. “Sua presença em nosso país”, dizia o texto do manifesto, “não é desejada pela esmagadora maioria da população nacional”. Ao contrário do que aconteceu na Feira do Livro de Jaguará do Sul, contudo, os organizadores do seminário não se deixaram intimidar. O convite à Butler foi mantido e o seminário tornou-se um caso exemplar de ativismo democrático contra o autoritarismo e a intolerância na sociedade brasileira.

“Desconvidar” um  autor ou autora por razões orçamentárias é, de certa forma, natural. Nem sempre o que se imagina cabe no bolso. E há uma distância entre o tempo do planejamento e o dia do início do evento. Neste meio, entra a captação de recursos que, às vezes, não cumpre as metas estabelecidas. Mas cancelar a presença de um convidado em um evento pelo que ele ou ela representa é outra história. Miriam Leitão, mineira de Caratinga, e Sergio Abranches foram convidados para falar sobre a sua formação como escritores. A natureza do convite foi clara: “uma biblioteca afetiva”. E a alegação divulgada, sobre a impossibilidade de se preservar a “integridade física” dos mesmos é, no mínimo, duvidosa.

O que aconteceu na Feira do Livro em Santa Catarina é covarde e assustador – e nós precisamos nos dar conta do que está acontecendo à nossa volta com a erosão das grades de proteção à democracia no Brasil. O cancelamento do convite à Miriam e Sérgio não é apenas a evidência de que os organizadores do evento humilharam-se diante das pressões. Significa que eles se curvaram frente à intolerância que nega qualquer divergência e elimina o horizonte da igualdade. A intolerância está situada na raiz do ódio, um ingrediente indispensável para emprestar um rosto novo e contemporâneo ao totalitarismo e conferir sentido a ele. O ódio entra em ação quando o Outro é visto como o inimigo que precisa ser silenciado, excluído, aniquilado. Foi com esse tipo de violência que os organizadores do evento consentiram.

Mas o cancelamento do convite tem um significado oculto, e muito mais preocupante: nenhuma instituição democrática se protege sozinha. Hoje, no Brasil, a cultura e as artes são particularmente vulneráveis – bem como o jornalismo e as universidades. O que protege a democracia é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa. E onde termina a nossa disposição de proteger essas instituições, começa a tirania. Os signatários do manifesto que exigiu o cancelamento do convite são um punhado de indivíduos insulados que se recusam ao debate, ao esclarecimento recíproco, à troca de opiniões, ao aprendizado e à informação – não há nada que ligue essas pessoas num agregado de interesses comuns e faça delas uma comunidade. Cabe lembrar: uma sociedade que não se funda nos laços da solidariedade, da tolerância e do compartilhamento, é também sem compaixão e “não merece o nome de cidade, mas antes o de solidão”, como disse Espinosa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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